1-Introdução
As crianças e os seus ambientes não são angelicais. As crianças são impertinentes, curiosas, cheias de energia para despender (energias naturais) e predispostas para errar para poderem aprender. Nas primeiras idades, o processo de desenvolvimento é complexo e de difícil compreensão, mas simples na forma natural como ocorrem essas aquisições no tempo e no espaço: a formação de padrões motores básicos, a gestualidade, a linguagem, a formação e estruturação do pensamento, a importância do brincar, o corpo e o espaço físico, as emoções e a estruturação do pensamento lógico, o sentido da comunicação verbal e não-verbal nas relações sociais, etc. A necessidade de jogo de actividade física atinge o nível mais elevado por volta dos 3 aos 8 anos no desenvolvimento humano. Trata-se de um momento crucial de conquistas e experiências que devem ser vividas para darem e terem sentido no desenvolvimento ao longo da vida.
A procura de autonomia (distanciação) e procura de segurança (proximidade) é uma boa estratégia para perceber o sentido da evolução humana e o processo de aquisição de autonomia e independência motora nas primeiras etapas de desenvolvimento. Aprender a mover o corpo no confronto com o desconhecido, o incerto e o imprevisível, e mover o corpo através do ensaio e erro para aprender a adaptar-se é a maneira como a criança vai estruturando de forma progressiva as aquisições necessárias ao seu crescimento.
Este é um fenómeno que acontece em todas as espécies animais. Trata-se de uma questão de sobrevivência e aquisição de ferramentas para se tornar adulto. Este mecanismo adaptativo é ainda mais particular no ser humano por ter uma infância relativamente longa e necessitar de assegurar a sua sobrevivência através de uma relação muito complexa entre mudanças que ocorrem no seu corpo e no seu ambiente. Entre os primatas, o homem apresenta um especial e longo período de vida, longo período de imaturidade, largo tamanho cerebral, larga capacidade de aprendizagem, família relativamente reduzida e um extenso investimento parental. A relativa falta de preparação para a vida ao nascimento, apresenta muitas vantagens para a nossa espécie. É na verdade uma estratégia deliberada do ponto de vista evolutivo. O corpo serve de mediador nesta aprendizagem de diversas competências e saberes. O jogo e a motricidade (corpo em movimento) são o segredo quase mágico que as crianças naturalmente utilizam para adquirirem essas aprendizagens internas e externas.
O jogo e a motricidade colocam-se como um instrumento poderoso, e se bem utilizado, possibilita a promoção e a aquisição de um conjunto de aprendizagens fundamentais no desenvolvimento psicológico, emocional e social das crianças. O ser humano é um participante interessado num amplo jogo, em que o seu resultado permanece em aberto. Deste modo, o brincar (jogo exploratório) é um fenómeno natural que desde o início tem guiado os destinos do mundo: ele manifesta-se nas formas que a matéria pode assumir, na sua organização em estruturas vivas e no comportamento social dos seres humanos.
2-O que é brincar?
Brincar é adaptar-se a situações incertas, é treinar para o inesperado, através de ações diversas na utilização do corpo em espaços físicos e na relação com os outros. Por isso, tornam-se fundamentais atividades livres que promovam o jogo simbólico (pretend play), o jogo com objetos (play material), o jogo social (social play) e o jogo de atividade física (physical activity play). Brincar é um comportamento de escolha livre, intrinsecamente motivado, dirigido pessoalmente, com um propósito explorador, de risco e procura adaptativa, aprendizagem e com enorme empenho de imaginação e de fantasia. Os benefícios são muito significativos em termos de: capacidade adaptativa (motora, cognitiva, emocional e social), cultura de sobrevivência, confronto com adversidades, regulação emocional, autoconfiança, relação social e ganhos significativos de competências motoras, cognitivas e sociais
O contacto com a natureza e a capacidade de confronto com o risco são competências fundamentais na estruturação de uma cultura lúdica infantil. Uma criança que não brinca de forma regular e sem constrangimentos em espaço e tempo não é uma criança saudável. Os estudos demonstram uma relação muito relevante entre brincar e ser feliz na infância e o sucesso na vida adulta. Brincar é uma linguagem universal que todas as crianças compreendem independentemente do espaço geográfico ou cultural. Temos afirmado que brincar em casa, na rua ou na comunidade é uma necessidade fundamental para adquirir instrumentos adaptativos necessários na adolescência e na vida adulta. Brincar é para a criança uma atividade de exploração do seu envolvimento físico e social, procurando sempre que possível descobrir e ter curiosidade de colocar o seu corpo em confronto com situações adversas e de risco controlado. O futuro nunca foi tão incerto. As profissões existentes hoje provavelmente não existirão amanhã. O que estamos a ensinar hoje na escola terá provavelmente pouca utilidade no futuro. De acordo com o Fórum Económico Mundial 2016, o trabalho no futuro exigirá ao cidadão comum competências para resolver problemas complexos, ter pensamento crítico, ser criativo, trabalhar em equipa, e ter habilidades de comunicação. Brincar e ser ativo na infância permitem desenvolver a capacidade de adaptação, de resiliência e criativa necessárias para se ser feliz, empreendedor e ter sucesso na adolescência e na vida adulta.
Esta complexidade terá lugar ao longo do seu desenvolvimento num jogo de forças contraditórias, procurando uma capacidade de resposta ao envolvimento em que vive, progressivamente mais adaptada e culturalmente mais significativa. A necessidade de explorar o seu envolvimento próximo é um pré-requisito para a sobrevivência, através da contínua exercitação do seu corpo e cérebro na busca exterior de acontecimentos e na avaliação de informação. É esta capacidade de mobilização que dá ao corpo e em particular às suas estruturas mentais uma significativa flexibilidade na variedade de respostas a situações complexas. Esta flexibilidade permite ao homem alterar a sua habilidade para entender e explorar a informação para a descoberta do seu envolvimento e transcender o ciclo natural de dependência. Este desenvolvimento é deste modo necessário não só para a sua sobrevivência imediata, mas também para a evolução da espécie.
O brincar é em nosso entender o mecanismo pelo qual essa flexibilidade é estruturada. Fazendo isto, o brincar livre torna-se numa das formas mais importantes do comportamento humano desde o nascimento até à morte e absolutamente essencial na formação da sobrevivência e estruturação do processo de desenvolvimento do homem. Simbolismo e transmissão cultural de geração em geração, marca particularmente a espécie humana em relação às restantes.
O conhecimento disponível em psicologia do desenvolvimento (considerando diversas escolas de pensamento) sobre a evolução da cultura lúdica na infância é limitada e frágil quanto à fundamentação dos efeitos no desenvolvimento da criança do envolvimento físico e social, socialização, educação ambiental e “design” de espaços, materiais e equipamentos de jogo. Algumas perspetivas de âmbito comportamentalista ou cognitivista sobre as relações criança-envolvimento, apresentam-se como teorias reducionistas e com um nível explicativo pouco centrado em acontecimentos do “mundo real”. O brincar e ser ativo são formas através da qual a criança se socorre para interiorizar o seu envolvimento físico e social. A ideia de explorar as relações entre ecologia e jogo permitem a formulação de um novo paradigma e uma dimensão conceptual no estudo do comportamento lúdico em termos evolutivos. A perspetiva ecológica (baseada na definição biológica clássica de ecologia como o estudo das relações entre as coisas vivas e seus envolvimentos) pode ser equacionada e aplicada às circunstâncias de vida do homem e seus espaços de ação. A perspetiva da ecologia humana, considera que o indivíduo existe como parte de um ecossistema de múltiplas relações.
3– Brincar com a gravidade e a conquista da autonomia
Brincar é a verdadeira matriz do desenvolvimento humano quer individual quer coletivo. Um dos primeiros problemas da criança em termos de desenvolvimento motor é o desafio da gravidade. A conquista da posição de pé implica um grande conjunto de aquisições motoras, sensoriais e perceptivas. Da quadripedia à bipedia o percurso é lento, mas evolutivamente rápido considerando a complexidade do processo. A aquisição da marcha e depois da corrida (transporte do corpo no espaço) exige multiplas experiências e cuidados com o corpo. Este domínio dos movimentos de locomoção, são uma referência básica e estruturante da motricidade humana. Qualquer criança transporta este desejo ancestral e espontâneo de se libertar da gravidade (fig. 1).
Fig.1 – Percurso evolutivo de desenvolvimento motor no 1º ano de vida
De forma paralela, as experiências com objetos são essenciais para as aquisições de natureza manipulativa. Brincar com as mãos (materiais naturais ou construídos), são desafios fascinantes para as crianças aprenderem a ter curiosidade e capacidade de resolver problemas. Este investimento na infância é decisivo para o desenvolvimento do cérebro e para a capacidade de adaptação motora, percetiva, emocional, cognitiva e social no futuro. O desenvolvimento e ajustamento postural (boa colocação dos apoios, cintura pélvica, cintura escapular, coluna vertebral e posicionamento da cabeça), deve ser considerado como um fator educável da motricidade da maior importância. A estruturação da direccionalidade e da lateralidade corporal constitui uma das mais complexas aquisições motoras na infância. Como situar o corpo no espaço? Como aprender a movimentar o corpo segundo objetivos bem definidos e necessários para uma movimentação com significado? Um bom ajustamento postural é um bom indicador do estado emocional e afetivo da criança. Uma boa postura implica um domínio do equilíbrio corporal em termos estáticos e dinâmicos. Também a relação com objetos (movimentos manipulativos e preensivos) implicam operações perceptivo-motoras mais sofisticadas. Lançar, agarrar, pontapear, cabecear, dribar e preensões de pequenos objetos são aquisições motoras com grande relevância na vida quotidiana e em futuras aprendizagens mais complexas. O domínio dos movimentos manipulativos (objetos e materiais) através da utilização da periferia corporal (mãos, pés e cabeça), constituem as maiores conquistas da humanidade. A ligação destes elementos fundamentais e estruturantes da motricidade na infância, traduzem o nível de coordenação motora global e segmentar nas primeiras idades. Estas aquisições motoras individuais (psicomotoras) acontecem de forma muito diversa entre as crianças, considerando a influência de variáveis genéticas e ambientais. Estas aquisições e experiências motoras e percetivas (locomotoras, posturais e manipulativas), partilhadas em brincadeiras em pares ou em grupo, permitem a evolução da maturação cognitiva e social que é fundamental para a aquisição de linguagens mais abstratas e sofisticadas. Na primeira infância (0 aos 3 anos) estas aquisições motoras, sensoriais, percetivas, emocionais, cognitivas e sociais são decisivas para futuras aquisições mais complexas. O tempo vivido na Creche e a interação parental são fatores decisivos neste processo de evolução humana. Colocar as crianças perante situações novas e de risco (situações problema) é um passo decisivo para a conquista de mais autonomia e autoestima. Não será bom para as crianças que os adultos manifestem uma excessiva proteção, uma cultura de medo em relação ao risco físico e não promovam atividades em espaços exteriores (naturais ou construídos). A estimulação em casa e fora dela (brincar com os filhos) é tão importante como a estimulação regular sistemática e intencional operada no contexto escolar. A Creche e o Ensino Pré-Escolar são contextos em que é possível criar situações desafiantes para o brincar livre e atividades motoras capazes de criar narrativas simbólicas (jogo criativo, de imaginação e fantasia) fundamentais a um desenvolvimento equilibrado e harmonioso.
Este reportório motor básico (saber fundamental) é muito importante no desenvolvimento das relações sociais entre as crianças. O desenvolvimento da motricidade permite uma conquista progressiva de autonomia do homem através de referências biológicas e culturais. A comunicação motora através do contato físico (luta e perseguição) e interacção com objectos (brincadeiras e jogos) completam a fascinante linguagem do corpo numa perspectiva evolutiva. Estas aquisições motoras em grupo (sociomotoras) permitem criar uma identidade própria nas culturas de infância. Jogo e motricidade na infância são inseparáveis. As crianças quando se movimentam fazem-no com um sentido lúdico (prazer, descoberta, risco, fantasia e adaptação). Mover-se é procura de prazer e autonomia (distanciamento progressivo). Educar é distanciar. Estes fatores básicos do comportamento motor infantil, podem ser educáveis e a sua observação regular são um excelente instrumento de diagnóstico pedagógico e terapêutico. Aprender a movimentar-se implicará uma complexa rede de factores internos e externos.
Se a atividade lúdica e motora no espaço escolar é fundamental no desenvolvimento da criança (estimulação organizada, sistemática e intencional) do mesmo modo as oportunidades de jogo livre fora da escola são absolutamente indispensáveis na estruturação do desenvolvimento perceptivo-motor (estimulação ocasional). No entanto são preocupantes as condições actuais de vida das crianças na sociedade moderna.